Vilã ou mocinha? A inteligência artificial e o novo drama do mundo editorial

Entre promessas de eficiência e o medo de perder a alma dos livros, o debate sobre a IA revela mais sobre nós do que sobre as máquinas

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A inteligência artificial desafia o mundo editorial e expõe um dilema humano: criar com alma ou deixar que as máquinas pensem em nosso lugar? — Crédito: Gustavo Souza

A história da humanidade sempre foi, de certo modo, a história das ferramentas que criamos. A pena, a prensa, a máquina de escrever, o computador, e agora a inteligência artificial. Toda invenção nasce para ajudar o homem, mas cedo ou tarde acaba o colocando diante de si mesmo. A IA é o espelho mais nítido dessa velha ironia. Ela escreve, responde, “pensa” e, no entanto, não sente nada. E é justamente isso que nos incomoda: ver a forma da inteligência sem a alma que a anima.

No mundo editorial, esse espelho tem causado um misto de fascínio e desconfiança. Editores testam algoritmos que preveem o sucesso de um livro antes mesmo de ser publicado. Plataformas usam IA para revisar, traduzir e até sugerir sinopses. Tudo mais rápido, mais barato, mais eficiente. Mas há um problema que nenhuma máquina consegue resolver: o sentido. A tecnologia entende o que é coerente, mas não o que é verdadeiro. E é aí que a literatura começa — no instante em que a palavra deixa de ser apenas lógica e se torna revelação.

Homero teria rido da nossa pressa. Aristóteles teria pedido calma. Santo Tomás teria observado que a razão só é boa quando busca o bem. Porque, no fundo, a IA não é vilã nem mocinha: é um amplificador. Se o homem usa a inteligência para servir à verdade, a máquina o ajuda. Se a usa para fugir dela, a máquina o destrói mais rápido.

O drama do nosso tempo não está nas máquinas, mas na maneira como o homem vem se tornando parecido com elas: veloz, produtivo e superficial. O escritor que confia tudo à IA não percebe que, ao entregar a própria lentidão, entrega também a própria profundidade. Escrever exige pausa, exige erro, exige dúvida. É um ato de humildade. Um texto perfeito demais, polido demais, é como um rosto sem rugas: parece jovem, mas perdeu a história.

O medo de que a inteligência artificial destrua a literatura é compreensível, mas talvez exagerado. Ela não tem poder de matar o que é humano, apenas de copiar o que é fácil. O que pode desaparecer não são os grandes livros, mas o esforço para merecê-los. Quando a leitura vira consumo e a escrita vira produção, o livro deixa de ser encontro e vira produto. E nisso a IA só acelera o que nós mesmos começamos.

No fim das contas, a máquina não escreve livros — ela apenas rearranja o que o homem já escreveu. E o homem, mesmo cansado, continua sendo o único capaz de transformar a palavra em espírito. Enquanto existir alguém disposto a pensar devagar, a sentir o peso de uma frase, a duvidar de si antes de apertar “gerar texto”, a literatura ainda estará viva.

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Filósofo e articulista. Escreve como quem conversa à mesa, com ironia e franqueza, sobre o que a filosofia perdeu quando deixou de buscar a verdade. Para ele, pensar é resistir à confusão do tempo presente — é manter acesa a chama da lucidez num mundo que já se acostumou à mentira. Em seus textos, fala ao leitor como a um amigo, provocando-o a não ter medo de ver as coisas como realmente são.
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